domingo, 14 de março de 2010

Diagnóstico


Tá bom, já entendi. Você é homeopático.

Enquanto eu faço planos, sonho, imagino um milhão de possibilidades, de viagens, de momentos ao seu lado, você trabalha, pensa na sua vida e almoça tranquilo. Enquanto eu não consigo dormir de tanta vontade de passear por teu corpo e ocupo-me horas a fio pensando em você, você nem se lembra de mim a maior parte do tempo.

Eu passo o dia inteiro esperando o meu celular tocar. De quando em vez, você se recorda da minha existência e me faz um convite (o qual eu aceito prontamente, é claro). Às vezes, liga até a cobrar e eu recebo a sua chamada sem pestanejar. A gravação é um prenúncio de que eu ouvirei a sua voz dentro de instantes. Contento-me com o pouco que resta de você. Uma sobra.

Quantas vezes eu deixei um compromisso de lado só porque você ligou e sugeriu outra coisa. Nem te contava que eu já estava pronta, a caminho de uma festa ou até mesmo de um encontro. Mas bastava eu ouvir a pergunta: vai fazer o quê hoje? E a minha resposta sempre era: "nada... E você?" Eu ciscava em suas migalhas e achava que isso era o melhor que eu podia ter.

Eu acreditei que o amor era repartido em pequeninas pílulas, que eu ingeria apenas quando você me ofertava. E fui ficando doente. Faltava remédio para a minha espera. Faltava tempero na minha vida. A luz se apagava e eu não me encontrava mais na escuridão.

Até que eu resolvi me olhar no espelho. E vi que nem estava tão gorda assim quanto você dizia. Nem tão feia. Nem tão velha. Nem tão sem graça. E nesse dia, eu resolvi sair para dançar. A dança mexia com tudo dentro de mim. Cada movimento me libertava de uma algema que me prendia a você. E depois de uma noite inteira, suada, cansada e completa, eu me sentia feliz.

Você pode até ser homeopático. Mas eu sou uma dose cavalar de existência.

sábado, 13 de março de 2010

Déjà vu


A sua presença me traz a sensação da lembrança.

Enquanto você fala, transporto-me anos-luz e viajo no tempo. Chego ao exato momento em que eu te conhecia e você me conhecia. Não éramos estranhos como agora.

Olhar para você é como redescobrir um amigo da tenra infância. Passam-se os anos, mas alguns detalhes não negam o que o tempo não pode apagar.

Para me acostumar com a sua presença terei que redesenhar o seu rosto. Terei que criar uma nova memória de você.

Tento imaginar que gosto tem o seu beijo para me lembrar que ele já existiu. O toque que já percorreu o meu corpo em outros mundos tem agora o sabor da novidade. Amanheço feliz com o nosso encontro.

Já nem parece que sua voz é tão nova assim. Pensando bem, até reconheço essa pitada de rouquidão.

Consigo reconhecer os seus passos. O seu perfume não é um cheiro novo para mim. Lembrei-me de que toma um copo de leite antes de se deitar. É mais do que familiar a forma com que mira as páginas do livro, com os óculos um pouco abaixados, escorregando do nariz. Recordo-me do som de sua risada. E do quanto eu gosto de ouvi-la. Com um pouco de esforço, sei até qual a sua flor preferida: não gosta das rosas por causa dos espinhos, mas as gérberas, cultiva-as até em pensamento.

Estranho... acho que sei a próxima palavra que vai dizer.

Tá vendo? Acertei!

Não, não se preocupe, você não está se tornando previsível, eu é que ando me lembrando demais.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Filosofia de butiquim


A vida é uma caixinha de surpresas. Peças pregadas aqui e acolá. Desejos e sonhos despencando do céu como a chuva fina de um fim de tarde. Mitos criados ao sabor das ondas de um mar que oscila noite e dia encobrindo e revelando a inconsistência do chão em que pisamos. Molduras para as telas mentais que repousam em nossos álbuns imaginários de lembranças de outrora. Sorrisos sinceros para saudar o dia que nasce e outros amarelos para despedir-se de belos dias que se vão. Dentes afiados para ajudar a mastigar os sapos que a vida nos faz engolir. Línguas afiadas para ir direto ao ponto quando se quer ferir. Tapetes que voam por sobre o infinito caminho de estrelas do nosso universo particular. Palavras que ecoam sentimentos indizíveis. Terças-feiras insólitas sob a luz da lua. Mãos que se tocam sem se encostar. Num balé sem ensaio, a vida segue não menos devagar. E não menos feliz.


terça-feira, 9 de março de 2010

(Sem título)


Pixels sobre tela
Autor desconhecido
Ano de eleição (e de Copa do Mundo)

segunda-feira, 8 de março de 2010

domingo, 7 de março de 2010

Fita branca


Encontros não são propriedade. Acontecem para que saibamos que somos feitos de doses. Precisamos nos medir para não exagerar ou faltar. O remédio só faz efeito se ministrado de forma precisa.

É como o suco que acaba de sair do liquidificador. O canudo suga o líquido pesado, embaixo. E a ânsia em sorver a espuma tira a graça do ritual. Perde-se a leveza pela pressa.

Entrar em uma nova órbita é passear por paisagens de quadros diferentes. O artista escolhe as cores e nossos olhos seguem o horizonte. Não há regras para a criação. Inspirar-se é o melhor guia. A natureza só é morta para quem não gosta de caminhar.

Os encontros não escolhem dia. Nem hora. O lugar é o cenário. Não vai haver claquetes e nem ensaio. Roteiro é improvisar.

Os textos não podem (e não devem) ser decorados. A espontaneidade é o limite. Falar é juntar palavras. E palavras nada mais são do que letras jogadas ao vento que resolveram se dar as mãos.

Nem todo domingo de chuva, chove. Nem todo corpo cansado pede pijama. Nem todo filme comprido é longo. Nem todo gesto tem intenção.

Nem sempre se chega à polpa da fruta sem enfrentar os espinhos.

Conversa gostosa tira o sono. Mata de alegria e não morre assim tão cedo. Fica impregnada, amarrada, passeia colada com a gente como uma braçadeira de capitão. Uma fita branca amarrada no braço. Ou uma vermelha no dedo para não esquecer que a vida acontece do lado de lá da janela. Quem quiser, que pule.

Minhas palavras favoritas moram no fundo do copo, perdidas na espuma. Fico me policiando para não engolir.