domingo, 19 de dezembro de 2010

O amor é Reveillon


Calo-me para escutar as angústias de minh'alma. O peito aberto sussurra o drama de bater descompassado.

Entre altos e baixos, salvam-se todos, porque não há nada de letal no amor. Não se morre de amar nem se mata de dor. Amar é viver para a morte que virá um dia. Pode demorar, mas sempre chega. As fichas sempre caem em momentos diferentes. Seja por bem ou por mal-me-quer.

Amar dá um pouco daquela sensação que a gente sente no fim do ano. É sempre um recomeço, mas tem tanta coisa pra fazer antes de chegar o ano novo. Tem tanta pendência pra resolver, tem tanta roupa pra doar, tem tanto armário pra arrumar, que mesmo que a casa esteja uma bagunça dá uma certa sensação de que seria melhor deixar como está só pra não ter que encarar a faxina.

Quando a gente ama, prefere ficar lá, amando sem parar. E nem sempre percebe que aquele sentimento difuso, que se confunde com um monte de outras coisas, já não é mais amor. Nem sempre ele faz cócegas no estômago. Muitas vezes, já tem séculos que a pessoa sequer consegue arrancar um sorriso da gente, quiçá uma crise de riso...

É difícil dizer adeus a um amor. Mas algumas partidas são necessárias para preencher o coração. O que já não é mais amor não pode ter razão de ser.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

O dia em que virei Indiana Jones


Não sou expert nesses sites de compra coletiva. Sempre esqueço de verificar algum detalhe quando efetuo um negócio da China. Até agora, tudo o que comprei esteve mais para presente de grego, isso sim.

A última compra foi uma imperdível limpeza de pele com um peeling de diamante por apenas R$ 88. Ah, e o pacote incluía uma massagem relaxante. Parecia incrível e eu e mais algumas dezenas de muchachas dispostas a ficar belas por pouco dinheiro entramos no cardume. Talvez elas tenham sido mais espertas do que eu e acredito que eu devo ser a única entre todas que esqueceu de verificar a localização da clínica de estética. Qual não foi a minha surpresa ao descobrir que o lugar ficava a 40 quilômetros da minha casa. Ê barato que sai caro!

Além da distância, ainda tive que lutar por um espaço na agenda, já que o cardume era grande e as vagas, poucas. Pouco mais de um mês depois da minha compra sensacional, rumei para o recanto da beleza sem fim. Achei que ia chegar em um SPA repleto de piscinas de água cristalina e moços fortes e malhados abanando moças jovens e esbeltas segurando copos de suco de frutas vermelhas com adoçante. Já tinha me imaginado caminhando pelos caminhos de seicho entre árvores frondosas e uma grama bem aparada.

O que encontrei foi uma saleta com divisórias de octanorme no terceiro andar de um prédio esquisito e uma esteticista tagarela. Era incrível a capacidade dela de não parar de falar. E mais: fez um discurso quase possuído sobre higiene, limpeza e esterilização. Senti que estava no reino da assepsia até que, de luvas, ela pegava todo o material de que precisava, abrindo e fechando portas de armários, mexendo nos equipamentos e até atendendo o telefone. Ou seja: luvas para quê, né?

Ignorei a parte das luvas e me resignei a escutá-la. O tal do peeling de diamante não tem nada de glamouroso. É uma lixa com ponta de diamante que esfolia sua pele a força. Até aí nada de mais. O bicho pegou mesmo quando ela colocou uma argila no meu rosto e disse que eu tinha de ficar calada, imóvel. Depois de passar tudo, ela disse: essa argila dá uma repuxada na pele, por isso a gente sempre pergunta se a pessoa é claustrofóbica, sabe? E eu, reduzida a uma múmia silenciosa me perguntava em silêncio: como assim ela sempre pergunta? Ela não me perguntou nada!

Achei que ia ser uma repuxada básica, tipo cola branca na mão. Foi aí que o desespero começou. A argila repuxava em todos os sentidos e parecia que tudo ia mudar de lugar no meu rosto. Já estava vendo a hora dos olhos encontrarem com a boca. Me senti emparedada, que nem na cena em que o Indiana Jones parece ter chegado ao trágico fim de ser esmagado por duas paredes que vão se juntando. E não podemos nos esquecer de que eu estava cumprindo a lei do silêncio à risca, o que só aumentava meu desespero dentro daquela máscara que ia endurecendo na minha cara, com a possibilidade de me transformar na Senhora Cabeça de Batata depois de uma criança de dois anos ter encaixado as peças.

Algum tempo depois, a esteticista tagarela tirou as paredes do Indiana Jones do meu rosto e disse que tinha anunciado outra promoção no site de compra coletiva. Desta vez era uma massagem relaxante para pés e mãos das sereias e tubarões. O cardume que me desculpe, mas prefiro seguir na carreira solo. Compra coletiva pode terminar em filme de aventura.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

O mundo de Sofia que Saramago não imaginou


De todo vazio, resta uma mente repleta de pensamentos difusos. Acalmar a razão quando o coração não consegue nem pensar em pensar é tarefa para raros. É preciso subir na ponta do pêlo do coelho para ver de fora o que a pelugem nos deixa escapar. Caminhar pelas colunas felpudas esbarrando em uma cegueira branca desnorteia quem quer que seja.

Olhar para frente e só ver uma cor não é enxergar. Como ouvir não é escutar. No fundo, o que Napoleão guardava sob a mão direita era o coração. Não há como viver sem ele, nem só com ele.

Você precisa se amar para me amar. E eu preciso ser inteira para dividir com você a vontade de ser um só.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Metrônomo

"O coração é o metrônomo da vida, e há muita gente na humanidade que se esquece disso."
Villa-Lobos

O metrônomo é um relógio que mede o tempo da música. Ele bate a intervalos regulares, indicando o compasso para o músico. A batida dá vida à melodia e define o ritmo da composição.

Até ver um destes de perto nunca tinha entendido o texto do grande Villa-Lobos. Eu ficava me perguntando: que troço é esse? Que palavra difícil foi essa que ele escolheu? O que isso tem a ver com o coração? E, ouvindo o bater ritmado do metrônomo, eu entendi o que ele quis dizer no texto em que afirma que o Brasil tem a forma de um coração e que a humanidade precisa de um metrônomo. O pulsar que nos mantém vivos anda descompassado. É preciso, ao menos, encontrar as pessoas que têm um coração batendo em um ritmo parecido com o nosso para unir forças pelo bem maior de todos. Vibrar na mesma sintonia por um mundo melhor.

Mas não sou ninguém para falar de metrônomos. Passo a palavras a Villa-Lobos que, com sua maestria, nos brindou com as belas palavras abaixo:

O Brasil tem forma geográfica de um coração. Todo brasileiro tem este coração. A música vai de uma alma a outra. Os pássaros conversam pela música. Eles têm coração. Tudo que se sente na vida se sente no coração. O coração é o metrônomo da vida, e há muita gente na humanidade que se esquece disso. Justamente, o que mais precisa a humanidade é de um metrônomo. Se houvesse alguém no mundo que pudesse colocar um metrônomo no cimo da Terra, talvez estivéssemos mais próximos da Paz. Por que se desentendem, vivem descompassados raças e povos? Porque não se lembram do metrônomo que guardam no peito, o coração.

Foi fadado por Deus, justamente o Brasil possuir uma forma geométrica de coração, e haver um ritmo palpitante em toda a sua raça, sobretudo no nordeste, este sentido de ritmo, de coração, essa unidade de movimento, esse metrônomo tão sensível.

Meus amigos, foi com esse pensamento que eu me tornei músico. Foi por isso que eu me tornei um escravo profundo e eterno da vida do Brasil, das coisas do Brasil. E, como não tenho o dom da palavra, nem da pena, mas tive o dom do som e do ritmo, transponho em sons e ritmos essa loucura de amor por uma pátria. Eis a minha apresentação. Eis o que é, em princípio, a justificação do que tenho feito pelo Brasil até a idade que tenho hoje. Peço perdão a todos de ter que falar um pouco da minha vida em relação a esse Brasil, mas é necessário e possa talvez servir de exemplo aos jovens seguir essa mesma trilha, esse mesmo destino que Deus me deu.

Eu fui pela música. E, se por acaso o meu exemplo possa servir de alguma coisa a todos os meus patrícios, façam o mesmo. Sejam livres. Lembrem-se do coração. Lembrem-se de que este é que é o metrônomo da realidade. Com ele terão a razão econômica de tudo, das coisas. Terão a medida exata da realidade da própria vida. Lembrem-se de que é a arte que vem do coração para um coração, de uma alma para outra alma, e a música é a primeira arte que conduz às outras artes. Eu não digo isto porque sou músico, não. Ela, porém, tem um poder positivo, digamos, um poder biológico.

Ela é uma terapêutica para a alma doente. A música é um consolo para o sofredor. A música é um embalo para o pequenino no colo de suas mães, seus pais. A música é o alento do desventurado. A música é a alegria daqueles que são alegres. A religião, qual das religiões que existem sobre a Terra e que não usou da música como elemento de atração aos seus crentes? Essa música que Santo Ambrósio utilizou para formar depois os cânticos litúrgicos definidos. É com essa música, senhores, que precisamos compreender que o Brasil vive, e que ninguém percebe.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Nem toda briga começa com a escolha de onde apertar o tudo de pasta dental


E aí ele vai e palita os dentes.

E a pouca ou quase inexistente intolerância, carinho e compreensão que havia entre vocês é engolida junto com a carninha que se desprendeu da gengiva na cutucada. E até o amor é engolido a seco e precisa de um gole de coca-cola para descer.

Assim se estabelecem as relações de quem não nasceu para didivir. É fácil dizer que o outro é difícil, que se veste mal, que escolhe as palavras erradas quando está na sala com seus pais. É fácil criticar a forma com que come, dirige, liga a tevê.

Existe entre nós algo de oculto que boicota as relações. Existe um diabinho que nos incita a ser intolerantes, exigentes e juízes do jogo da vida. Aprendemos a viver do nosso jeito, a construir o mundo sob o nosso ponto de vista e nada do que o outro traga acrescenta. Pelo contrário, atrapalha.

Vamos dando o nosso tom à música de nossa existência e, quando menos esperamos, dançamos sós, sem um par para carregar a rosa vermelha nos lábios.

Quando fechamos as janelas e criamos formas de viver que não consideram o outro, vão-se os amigos, vão-se os inimigos, vão-se os que sequer chegaram perto e vão-se, também, os amores. Aí, até o lugar onde cada um escolhe apertar a pasta de dente vira problema. E vira problema a escolha do filme na locadora, e vira problema onde ir no fim de semana. Coisas que poderiam ser prazeres edificados com os tijolos de cada um passam a ser um quebra cabeça de peças que não se encaixam. Quanto mais esforço, mais risco de quebrar.

Se a gente não cuida do outro e dos espaços em que o outro pode nos acessar, corremos o risco de fazer parte do entulho que nos rodeia. Fazendo parte da bagunça, fica difícil de ser encontrado.

A vida não-dividida não merece ser vivida.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Poesia ao contrário


O mar que não mais beija o céu.

A borboleta que não mais pousa na flor.

A noite que não mais termina em um dia de sol.

O sono que não mais tem um guardião.

O beijo que não mais tocará os lábios.



A vírgula que não veio após o ponto.

A lua que não veio, cheia, a seu tempo.

O mundo interior que já não é mais tão lindo assim.

A alma que não mais passeia entre os corpos.


Nem todo dia se sente que o mundo deve fazer sentido. E quem disse que há sentido pra tudo?

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Dúvida

Para que colocaram no dicionário aquela palavra de três letras que termina com M, tem um I no meio, mas não começa com S?

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O abismo entre falar e ser ouvida


O silêncio traz a dimensão do infinito. É um meio de enxergar ao longe o que a percepção deixa escapar quando ficamos atordoado com estímulos sem fim. O silêncio transporta para a imensidão do desconhecido, daquilo que abrigamos em locais escuros e pouco visitados. O silêncio nos provoca, nos incita, nos excita. Um passo para transformar a imensidão em devassidão. Estar em contato com tudo o que existe de mais sagrado e mais profano em nossas mentes ocupadas apenas pela ofegância da respiração descompassada.

O silêncio é porta de saída e de entrada. É começo, meio e fim. Ficar em silêncio é uma forma de nos ouvirmos, de conversar com nossas vozes. O silêncio por ser ensurdecedor. Pode reunir sonhos, pensamentos e imaginações ao mesmo tempo. Pode ser uma balbúrdia em que não se distingue o que é, o que foi e o que nem pode ser.

O silêncio pode ser o mundo berrando para calar tudo o que existe dentro de nós. O silêncio pode ser tudo dentro de nós berrando para calar o mundo.

O silêncio pode ser a ausência absoluta. Ou a presença sufocante.

Silêncio pode ser barulho. Ou apenas, silêncio.

domingo, 1 de agosto de 2010

Nada melhor do que não fazer nada...


É incrível como a semana atribulada nos faz desejar dias de paz no fim de semana e, quando chega o sonhado descanso, uma dose de culpa pelo não fazer nada toma conta de nós. Ficar de barriga pra cima sem nenhuma obrigação é o primeiro passo para o cérebro começar a ferver com ideias para ocupar o tempo livre. Mas não era justamente de tempo livre que estávamos precisando?

A vida corrida dos dias de hoje não nos permite o nada fazer. Mesmo quando não temos nenhum compromisso ou obrigação, vamos revirando nossos arquivos mentais para descobrir alguma pendência, algum assunto importante esquecido. E é impressionante a nossa capacidade de encontrar um milhão de possibilidades que vão ocupar o tempo já não tão livre assim. E no fim das contas, o fim de semana passa voando e a sensação de que as horas foram parcas para o cansaço e para o sonhado descanso nos fazem sonhar com o próximo fim de semana.

E quando chegam os dois dias de prêmio, novamente nos esquivamos do ócio e colocamos a nostalgia da correria e a saudade da rotina para matutar novas formas de não curtir a liberdade de horários.

Não sei se o ser humano nasceu para ser uma maquininha de trabalhar. Não sei se a sociedade atual transformou a gente num robozinho que não desliga nunca. Só sei que não olhar para os relógios e desligar o celular é uma combinação que vai muito bem com uma rede. Abrir um livro gostoso, tomar um chá e simplesmente não pensar em tudo o que ficou na vida lá fora pode ser uma ótima forma de retomar as obrigações diárias com as baterias renovadas.

Se você nunca tentou, não esqueça de afrouxar um parafuso, de garantir um bom estoque de comida e de deixar uma leitura agradável ao alcance das mãos. Qualquer dificuldade para relaxar deve ser vista como um passo natural no processo. Conte carneirinhos ou preste atenção na sua respiração. Um chocolate ou uma boa companhia podem ajudar. Só lembre de ligar o despertador do celular para não achar que a segunda-feira faz parte do pacote.

E boa viagem!


domingo, 11 de julho de 2010

Impermanência


Tudo aquilo que não é, está/Tudo o que pode ser, será/O dia que está por vir, virá/O que não deve permanecer, acabará/O pensamento que não cabe mais, transbordará/O movimento da dança de dois, cá e lá/O sentimento que veio lembrar/Peles que se encaixam como um jogo de montar/O cabelo que acaricia as costas sem tocar/A noite que enxerga o dia, luar/Asas que batem, se batem, voar/O que é uma possibilidade, quiçá/O futuro é a certeza do Deus-dará

sábado, 3 de julho de 2010

Ligando os pontos


Ela olhou para ele e decidiram dar-se as mãos. Ele olhou para ela com olhos de querer bem e apertou mais ainda sua mão entrelaça a dela. Os dedos, esmagados, queriam se juntar. Ali não havia dor, apenas querer estar mais perto.

Os braços eram ponte para o amor que ali havia. Eram o elo que unia os corações que se amavam. O suor das mãos apertadas era o orvalho do sentimento que transbordava. Dois caminhos que se encontram para virar um mesmo andar.

Quando não há bifurcações o destino é menos incerto. O caminho de dois é mais fácil quando a direção é a mesma. Ninguém sabe para onde o outro que ir se não souber escutar.

Braços: dados.
Ouvido: alerta.
Coração: remédio.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Insônia


A certeza do nascer do sol é o que torna a noite suportável. Dormir sem pregar os olhos não faz o relógio correr mais depressa. Pelo contrário, estica as horas. Enquanto o frio invade o cobertor, o vento brinca de assombrar.

Calafrios. E medo de não despertar.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Muros altos


Hoje eu sorri pro mundo e ele não me sorriu de volta. Pensei que o mundo poderia estar zangado com tantas agressões que o bicho-homem tem feito a ele. Ao invés de provocar um maremoto, resolveu me fechar a cara.

Depois de um tempo segurando meu sorriso amarelo, entendi que o mundo continuava girando. O sol tinha nascido. E até a lua dava o ar da graça mesmo no dia claro. Com o mundo estava tudo bem, na medida do possível, é claro. Quem viu as rugas na testa dele fui eu. O tom de cinza era cor da minha paleta. Pintei o mundo de fuligem para não admitir que a sujeira estava em mim.

Decidi soprar bem forte para afastar a névoa que me ofuscava a visão. Um suspiro para descortinar o mundo. Tentei olhar para ele com mais amor e poesia. Consegui encontrar respostas para as minhas perguntas. Só vejo beleza quando ela está comigo.

Nem sempre as portas estão abertas. Às vezes é preciso pular muros para continuar caminhando.

segunda-feira, 31 de maio de 2010

Mergulhos


Prender a respiração e submergir leva ao fundo do mar. Leva às profundezas mais belas e mais escuras. No fundo do mar moram peixes, cavalos, estrelas e uma pá de coisas que só existem lá. Mas para se chegar até tão longe, há que se enfrentar a falta de luz que a distância da superfície impõe.

O sol beija a água para revelar o seu azul. Mas o beijo dura apenas o tempo da luz. As camadas mais submersas não se revelam aos olhos, mas podem ser penetradas a nado, com braçadas desbravadoras de quem deseja explorar a imensidão de tanta água.

O gosto do mar é o gosto da lágrima. Um oceano de choros de alegria e tristeza. Um mundo que chora. De amor e de dor. Um mundo que tem superfície, mas não oferece a chance de pisar. Para descobrir o mar, é preciso afundar. Para descobrir de que cor é o azul do mar, é preciso se encontrar.

No oceano infinito, não dá para se preocupar com a falta de ar. É importante respirar fundo, mas só para garantir a força do mergulho. Há que se ter estômago. Fôlego, só para aumentar a contemplação.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Andar descalço por aí


Quando a gente esquece a delícia de colocar os pés diretamente sobre a grama logo cedo, quando o sereno ainda é o suor de cada folha verde que amortece o peso de nossos corpos em sua delicadeza, é hora de tirar os sapatos.

Os sapatos não nos deixam sentir o chão sob os pés. Se está quente ou frio, não sabemos. Nós nos colocamos acima do solo e nos isolamos do contato direto com o que nos estabiliza. Protegendo os nossos pés, deixamos nossas raizes de fora da terra.

Solados isolam. Não há a chance de tomarmos um choque bruto. Não há a chance de absorvermos a seiva bruta. Assim como o rabo do cachorro é o sorriso que ele pode oferecer, os pés são as asas de quem só pode voar em pensamento.

A sola do pé, raiz. A palma da mão, antena. Com-tato.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Desanuviar


Subo tão alto que chego a tocar o céu. Os pés descalços passeiam pelo ar em brancas nuvens. Tocar o chão significa pisar na realidade. A distância é quase como entre o céu e a terra. Ou melhor, entre o céu e o mar. O mar devolve para o céu o azul que ficou lá embaixo. O céu conversa com o mar em forma de chuva. Eles se viram como podem para encurtar distâncias.

Já eu, subo e desço. Mas nunca piso no chão nem toco o teto do mundo. Nem tanto ao mar, nem tanto ao céu.

Para beber da fonte, água
Para matar a sede, beijo
Para dormir com sono, abraço
Para pé com frio, calor
Para manhãs insones, sol
Para domingos à tarde, teatro
Para dia de feriado, cachoeira
Para fome de novidade, livro
Para dançar no escuro, música
Para a mesa de cabeceira, rosas
Para manter a ordem, bagunça
Para fugir de casa, silêncio

Para quem ama, línguas.
El mar. El cielo.


domingo, 18 de abril de 2010

Paciência


Entre a lagarta e a borboleta, há a espera. Entre duas mãos, o calor. Entre dois instantes, o tempo.

Cada pessoa tem seu passo. E em cada caminhada, um caminho. O objetivo nem sempre é o mesmo, mas os passos que se cruzam jamais retomarão o caminhar da mesma forma.

Há o tempo para se olhar. E o tempo para olhar o outro. Há o olhar que não enxerga o tempo. E os olhos que vêem o tempo passar.

A metamorfose não acontece do dia para a noite. É de um grande sentimento de inconformismo, ao tentar sair do casulo, mexendo para um lado e para o outro, que a lagarta se torna uma borboleta.

Ficar dentro do casulo é só uma forma de se preparar para voar. O amor exige asas, as borboletas. Mas também requer o período de incubação, o casulo. A transformação interna é o que possibilita o vôo.

Quando as borboletas vão parar no estômago, a gente sabe que a metamorfose foi completa.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Pelo alargamento do fim-de-semana!


Segunda-feira é sempre um dia estranho. Não menos do que o domingo, que é pintado com uma camada cinza muito própria dele. É uma cor que só se manifesta aos domingos. Assim como existe o brilho próprio da sexta-feira. É um brilho que só ela tem. É meio dourado, meio bronze. E reluz. Tem um tipo de pôr-do-sol que só existe na sexta. Parece muito com o de sábado, só que tem mais alegria, justamente porque é um prenúncio do sábado.

O domingo é aquele dia em que podemos curtir o não fazer nada, mas preferimos ficar incomodados com a proximidade da segunda. Mesmo que segunda seja a nossa folga, ou que estejamos de férias, ou que possamos acordar mais tarde. Deve ser herança dos tempos de colégio, em que amargávamos o domingo pensando na volta às aulas do dia seguinte. Aí estendemos essa sensação pra faculdade, pro estágio, pro trabalho. E a coitada da segunda-feira vira vítima do nosso pavor.

A segunda é o dia em que nosso relógio biológico reclama da hora de acordar. Nunca é tarde demais pra levantar na segunda-feira. Os olhos grudam, a cama chama, o dia fica looooooongo. A saudade do fim-de-semana nos faz blasfemar contra o dia que interrompeu a farra e essa angústia só acaba na terça-feira.

Quando chega a terça, já vai começando aquela sensação de que dali a três dias chega a sexta, mais uma vez. É uma sensação parecida com parar no sinal fechado: é super chato, parece que demora um século, mas dá um alívio ter a certeza de que o sinal vai abrir. E assim como o sinal sempre abre, a sexta-feira sempre chega.

Quando chega a quarta, logo no começo do dia a gente pensa: faltam três dias pro final de semana. Quando chega o fim do dia, a gente pensa: só faltam mais dois dias. A quarta tem esse poder de carregar em si começo e fim. Começa dividindo a semana ao meio e termina sendo quase quinta que é quase a sexta.

Aí chega a quinta-feira, como toda a pompa de quem abre passagem para a sexta-feira. Nesse dia, dá até pra dar uma esticadinha porque, afinal de contas, ficar cansado na sexta não tem problema, porque logo, logo chega o descanso. Quinta tem um pouco de fim-de-semana em sua essência.

Aí você dorme, ou não, na quinta, com a alegria de saber que vai acordar e já é sexta. Já percebe aquele brilho novo no ar. O dia começa e fica tudo diferente. As pessoas sorriem mais, o clima já é de festa. Mal chega o fim do expediente e o trânsito já tá caótico. Mas tudo dentro do espírito festivo de sexta. Dia em que o trabalho não rende e que o final-de-semana torna-se a cada minuto, mais real.

O sábado dispensa comentários. Fica entre a sexta e o domingo. Só traz coisa boa. Você dorme na sexta e acorda no sábado, sabendo que ainda sobra o domingo pra sofrer pela segunda. E o sábado tem essa vantagem de não ter se tornado o dia em que as pessoas sofrem pelo domingo. É, sábado é lindo!

E pro mundo ser mais feliz, eu sugiro que todas as segundas virem o domingo número dois. E a gente tem que prometer que não vai transformar a terça em algoz. E que vai parar de sofrer com a chegada da segunda. Aí a gente tem mais fim-de-semana e menos dia útil.

Melhor do que isso, só licença remunerada por tempo indeterminado. E vamo que vamo, minha gente. Porque a vida passa rápido e a gente tem que aproveitar. Faça chuva ou faça sol. Seja sábado ou segunda. E enquanto minha campanha não se torna real, a gente se diverte 24 horas por dia, 7 dias por semana.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Manhã de domingo


No guardanapo de papel, a letra em garranchos dizia o que não era preciso dizer. As palavras menos necessárias, tornam-se mágicas quando ditas por quem não precisa delas.

As bochechas vermelhas, envergonhadas, mal conseguiam enfrentar a presença mais do que notada. O olhar se desviava. E quanto menos se olhavam, mais pressa tinham de se encarar logo de uma vez.

Os rostos desencontravam-se na angústia de quem quer logo se encontrar. O peito acelerado buscava o compasso alheio para não bater sozinho.

Numa manhã de domingo é possível deixar o ar escapar, o corpo todo se encher e o coração sair pela boca?

Tomou uma água de côco. Correu. Para não se sentir só, cantou. Para não se sentir tão leve, tirou o tênis e pisou a grama.

Fugir é um tipo de solução.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Lua nova


Engulo a noite com ânsias de quem tem pressa. Cada zumbido é testemunha da minha fome despudorada. As mãos abertas tentam pegar o que não podem carregar. Tento aumentar o passo, dar pulos para chegar logo. Faço queda de braço com o vento e deixo os cabelos embaraçados.

Quero ir adiante, entrar no meio da partida. Quero ser a juíza e apitar logo fim do jogo.

Não prego os olhos. Não sei meu nome. Não consigo mais sonhar.

Sigo a linha. Pulo a cerca. Jogo uma pedra na janela.

Um bilhete. Um nome. Um sinal.

Se hoje fosse lua cheia, ela virava um ponto final.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Calendário


Segunda-feia
Terça-freia
Quarta-fria
Quinta-freira
Sexta-feira
Sábado de aleluia
Domingo de novo

domingo, 11 de abril de 2010

Essa boneca não tem manual


Escrevo para matar a vontade de não escrever. Cada vez que o lápis aponta o papel, fujo um pouco de mim para passear pela página em branco. Subo pelas paredes para lembrar que piso o chão. A maior loucura é tentar ser lúcida o tempo todo.

Sorrir para tudo e rir de tudo não é coisa de gente feliz. Um pouco de desespero é o tempero certo para a calmaria que segue a tempestade.

Só dá branco quando a gente precisa clarear as ideias. Aí é melhor afundar a cabeça no buraco negro e sumir.

Tem uma nuvem em cima de mim. É um balão aqui em cima da cabeça pra divulgar a minha tela mental. Um filme desses que ninguém entende, mas finge que entende para não se sentir menor. Depois da sessão, comentários que não fazem sentido. Melhor assistir Hollywood e entender o enredo. Meu filme é complicado demais. Pode mudar de sala, o ingresso vale pra mais de uma sessão.

Combinar a lingerie é um desejo íntimo. Saber como a noite começa é normal. Não saber como termina também.

Dançar é uma forma de voar. Dormir é uma forma de esquecer. Comer é uma forma de sentir prazer.

Pintar e boca é arte. Borrar o batom é arte moderna.

Arte mesmo é viver.

Quero ser o museu de mim mesma. Um epitáfio que diz o que penso. Não estanque. Não post mortem. Um epitáfio de vida, entende?

Acho que eu preciso de um manual.


sábado, 10 de abril de 2010

O calor da noite fria


Dormi sem escovar os dentes para não perder o gosto da noite. Trouxe para a cama o sabor do vinho que aquecia o corpo. As palavras cuidavam da alma. Não há chave-mestra melhor do que o verbo para abrir o coração. Portas escancaradas dão passagem a gestos amplos e transformam olhares.

O céu despejava asteróides para pedir desejos em troca. A lua minguava para sorrir. À noite, nem todos os gatos são pardos. Uns brilham mais que outros.

A história não se repete porque não tem o mesmo começo. Nem o mesmo fim. O princípio foi ontem, quando o hoje nem sonhava em existir.

De braços dados com as estrelas, subo uma escada imaginária para acender o sol. Esperar o dia novo é sempre uma forma de recomeçar.

domingo, 4 de abril de 2010

O Adeus


Enquanto caminhávamos rio abaixo, as quatro permanecíamos caladas. Virar-se de costa para a serra e despedir-se das águas que corriam deixava-nos todas sem palavras.

O caminhar esboçava o sentimento de quem vai, mas fica. Os passos descompassados mostravam a resistência em partir. A fila indiana era o abraço que não deveria ser interrompido. As pernas se alternavam com certa vontade de voltar para trás e sentarem-se cruzadas no chão de pedras esquentado pelo sol. O contato com a natureza, o sentimento de pertencer ao local, davam a dimensão do quanto se é pequeno ao pé de uma montanha. Mas também do quanto se pode ser grande perante a vida e as escolhas que fazemos.

O silêncio falava o que todas pensávamos. Aquele momento só existia ali, enquanto andávamos, pensativas. Em poucos minutos, nós nos dispersaríamos e nos restaria a lembrança das risadas, da água, do céu e da amizade sem fronteiras. Ao som do canto do rio, cantávamos em coro calado a felicidade de respirarmos o mesmo ar. O momento, um presente.

As águas que desciam a serra carregavam nossos medos. E nossos passos deixavam para trás a certeza de que aquele lugar será para sempre um ponto de força, um campo de sonhos. Os laços não descem pelo rio. Nem a alegria de saber que, como o rio jamas será o mesmo, nós jamais seremos as mesmas. O rio leva as dúvidas e traz a certeza de que sempre renovaremos nossos votos de vida. Pisando naquela rocha, ou lavando as pedras que carregamos em nossas mãos.

A água que leva a alma, lava um tanto do meu ser. A água que lava a alma, leva um tanto do meu ser.

domingo, 14 de março de 2010

Diagnóstico


Tá bom, já entendi. Você é homeopático.

Enquanto eu faço planos, sonho, imagino um milhão de possibilidades, de viagens, de momentos ao seu lado, você trabalha, pensa na sua vida e almoça tranquilo. Enquanto eu não consigo dormir de tanta vontade de passear por teu corpo e ocupo-me horas a fio pensando em você, você nem se lembra de mim a maior parte do tempo.

Eu passo o dia inteiro esperando o meu celular tocar. De quando em vez, você se recorda da minha existência e me faz um convite (o qual eu aceito prontamente, é claro). Às vezes, liga até a cobrar e eu recebo a sua chamada sem pestanejar. A gravação é um prenúncio de que eu ouvirei a sua voz dentro de instantes. Contento-me com o pouco que resta de você. Uma sobra.

Quantas vezes eu deixei um compromisso de lado só porque você ligou e sugeriu outra coisa. Nem te contava que eu já estava pronta, a caminho de uma festa ou até mesmo de um encontro. Mas bastava eu ouvir a pergunta: vai fazer o quê hoje? E a minha resposta sempre era: "nada... E você?" Eu ciscava em suas migalhas e achava que isso era o melhor que eu podia ter.

Eu acreditei que o amor era repartido em pequeninas pílulas, que eu ingeria apenas quando você me ofertava. E fui ficando doente. Faltava remédio para a minha espera. Faltava tempero na minha vida. A luz se apagava e eu não me encontrava mais na escuridão.

Até que eu resolvi me olhar no espelho. E vi que nem estava tão gorda assim quanto você dizia. Nem tão feia. Nem tão velha. Nem tão sem graça. E nesse dia, eu resolvi sair para dançar. A dança mexia com tudo dentro de mim. Cada movimento me libertava de uma algema que me prendia a você. E depois de uma noite inteira, suada, cansada e completa, eu me sentia feliz.

Você pode até ser homeopático. Mas eu sou uma dose cavalar de existência.

sábado, 13 de março de 2010

Déjà vu


A sua presença me traz a sensação da lembrança.

Enquanto você fala, transporto-me anos-luz e viajo no tempo. Chego ao exato momento em que eu te conhecia e você me conhecia. Não éramos estranhos como agora.

Olhar para você é como redescobrir um amigo da tenra infância. Passam-se os anos, mas alguns detalhes não negam o que o tempo não pode apagar.

Para me acostumar com a sua presença terei que redesenhar o seu rosto. Terei que criar uma nova memória de você.

Tento imaginar que gosto tem o seu beijo para me lembrar que ele já existiu. O toque que já percorreu o meu corpo em outros mundos tem agora o sabor da novidade. Amanheço feliz com o nosso encontro.

Já nem parece que sua voz é tão nova assim. Pensando bem, até reconheço essa pitada de rouquidão.

Consigo reconhecer os seus passos. O seu perfume não é um cheiro novo para mim. Lembrei-me de que toma um copo de leite antes de se deitar. É mais do que familiar a forma com que mira as páginas do livro, com os óculos um pouco abaixados, escorregando do nariz. Recordo-me do som de sua risada. E do quanto eu gosto de ouvi-la. Com um pouco de esforço, sei até qual a sua flor preferida: não gosta das rosas por causa dos espinhos, mas as gérberas, cultiva-as até em pensamento.

Estranho... acho que sei a próxima palavra que vai dizer.

Tá vendo? Acertei!

Não, não se preocupe, você não está se tornando previsível, eu é que ando me lembrando demais.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Filosofia de butiquim


A vida é uma caixinha de surpresas. Peças pregadas aqui e acolá. Desejos e sonhos despencando do céu como a chuva fina de um fim de tarde. Mitos criados ao sabor das ondas de um mar que oscila noite e dia encobrindo e revelando a inconsistência do chão em que pisamos. Molduras para as telas mentais que repousam em nossos álbuns imaginários de lembranças de outrora. Sorrisos sinceros para saudar o dia que nasce e outros amarelos para despedir-se de belos dias que se vão. Dentes afiados para ajudar a mastigar os sapos que a vida nos faz engolir. Línguas afiadas para ir direto ao ponto quando se quer ferir. Tapetes que voam por sobre o infinito caminho de estrelas do nosso universo particular. Palavras que ecoam sentimentos indizíveis. Terças-feiras insólitas sob a luz da lua. Mãos que se tocam sem se encostar. Num balé sem ensaio, a vida segue não menos devagar. E não menos feliz.


terça-feira, 9 de março de 2010

(Sem título)


Pixels sobre tela
Autor desconhecido
Ano de eleição (e de Copa do Mundo)

segunda-feira, 8 de março de 2010

domingo, 7 de março de 2010

Fita branca


Encontros não são propriedade. Acontecem para que saibamos que somos feitos de doses. Precisamos nos medir para não exagerar ou faltar. O remédio só faz efeito se ministrado de forma precisa.

É como o suco que acaba de sair do liquidificador. O canudo suga o líquido pesado, embaixo. E a ânsia em sorver a espuma tira a graça do ritual. Perde-se a leveza pela pressa.

Entrar em uma nova órbita é passear por paisagens de quadros diferentes. O artista escolhe as cores e nossos olhos seguem o horizonte. Não há regras para a criação. Inspirar-se é o melhor guia. A natureza só é morta para quem não gosta de caminhar.

Os encontros não escolhem dia. Nem hora. O lugar é o cenário. Não vai haver claquetes e nem ensaio. Roteiro é improvisar.

Os textos não podem (e não devem) ser decorados. A espontaneidade é o limite. Falar é juntar palavras. E palavras nada mais são do que letras jogadas ao vento que resolveram se dar as mãos.

Nem todo domingo de chuva, chove. Nem todo corpo cansado pede pijama. Nem todo filme comprido é longo. Nem todo gesto tem intenção.

Nem sempre se chega à polpa da fruta sem enfrentar os espinhos.

Conversa gostosa tira o sono. Mata de alegria e não morre assim tão cedo. Fica impregnada, amarrada, passeia colada com a gente como uma braçadeira de capitão. Uma fita branca amarrada no braço. Ou uma vermelha no dedo para não esquecer que a vida acontece do lado de lá da janela. Quem quiser, que pule.

Minhas palavras favoritas moram no fundo do copo, perdidas na espuma. Fico me policiando para não engolir.

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Madrugada minha


Na minha madrugada cabe uma infinidade de coisas. Cabe a vontade de querer. Cabem os travesseiros de dormir. Cabe o corpo quente.

A madrugada é grande. Cabem os meus livros, as minhas vertigens, os meus anseios, os meus sonhos.

Para não perder o sono, sonho. Para que não me tire o sono, sonho. Vejo você.

A cama, grande. Eu e ela nos preenchendo de espaço. Eu era apenas um.
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Éramos um. E a cama, grande, emoldurava nossos corpos. Eu e você nos preenchendo sem espaços.

Os apaixonados transformam seus dias em espera e suas noites em testemunhas. Amam-se ao comer, ao dormir e ao acordar. Amam-se a distância. Nutrem-se de paixão. Seu alimento é a certeza do encontro.

A paixão alegra, vibra, empolga.

Não quero me apaixonar por você. Não quero perder a fome, as noites de sono. Quero de você o amor dos bichos, dos livros, dos livres. Não quero emagrecer de saudade, de fogo, de sede. Quero me livrar do medo, do receio, do ciúme. Não quero me apaixonar por você. Quero de você os beijos, os lampejos da sanidade que um dia eu tive. Não quero adoecer de raiva, de ódio, de mágoa. Quero me salvar dos freios, das dores, dos desejos. Não quero mais me apaixonar. Só por você.

A paixão consome, exige, liquida.
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Éramos dois. Uma cama para corpos que se repeliam até os limites de suas bordas. Sinto-me emoldurada. A cama não passa de passe-partout de dor que transforma em poesia estanque a musa que um dia fui pra ti.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Trava-língua


O que poderia existir quando você não existia na minha vida é apenas uma possibilidade.

Tudo que passou, passamos.

Restam outros símbolos. Outros signos. Ressignificação completa do que não precisava significar.

Minha língua fala a sua língua. Ou falava.

Quando eu te vejo, você se cala. Minha língua trava a sua língua.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Eu venho sempre aqui


O sol nasce todos os dias. Redondo ou quadrado, não importa, ele não perde a hora do café nem o canto do galo. A cabeça no travesseiro ouve o despertador ao longe. Os olhos teimam.

Acordo ao meu lado todos as manhãs. Minha inseparável companhia. Desejo-me bom dia sem dizer uma só palavra. Penso em algumas frases, alguns afazeres. Agradeço e me levanto.

Escovo os dentes e me olho no espelho. Essa também sou eu. É mais uma das partes de mim. Conto-me os sonhos da noite. Assunto não me falta.

O banho leva embora o silêncio. A mão não alcança as costas. O corpo ensaboado. Falta um pedaço. Estranha a sensação de não poder tocar tudo o que há em mim.

Abro os armários. A porta do alto, só alcanço com uma cadeira. Escolho um vestido com cheiro de guardado. Tenho que trocar. Não consigo fechar os botões virados para trás.

Sinto-me única, não só.

Estou sempre aqui. Venho sempre aqui. Visito-me como se fosse a primeira, como se fosse a última vez. Invento-me. Reinvento-me. Não há fuga desta condição.

Às vezes quero me abraçar. Quero me contar os meus segredos, quero dividir os bons momentos. Quero poder estar presente para não perder nada.

Em outras, quero correr. Quero tapar os ouvidos, quero ficar surda para não ouvir minhas vozes. Quero fugir um pouco da única pessoa que não pode fugir de mim.

Só eu sei o que é ouvir meu coração bater.
Só eu sei o que é ouvir tudo aquilo que eu não quero dizer.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

O fim da dor não é o fim do amor


Às vezes precisamos fechar os olhos para algumas escolhas. Determinar o que vai com a gente e o que fica para trás é saber que toda decisão implica em perder e ganhar. Escolher significa abrir mão daquilo que não foi escolhido. Encher a mão de areia é começar a contar o tempo perdido.

Dar um passo para frente, seguir um rumo diferente ou optar pelo desconhecido nem sempre parece simples de decidir. O óbvio se esconde e torna mais fácil escolher o caminho mais difícil. Ficar parado soa melhor do que ir adiante. É cômodo e oferece apenas um risco. O risco de ficarmos tão perto da média, que nossa vida deixa de ser uma onda para virar uma linha reta. Ficamos tão preocupados com as perdas, que esquecemos de olhar pros ganhos.

Não é preciso ir aos céus nem escavar, a fundo, a terra. Toda escolha tem dois lados. Ou mais. Ignorar o resultado é desconhecer o sabor da lágrima de emoção. É voltar ao momento em que a estrada se divide e afugentar a voz da intuição.

Saber pisar no freio faz as curvas serem mais suaves. Mesmo sendo curvas.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Momento Mafalda III


Constatação do meu primo de 10 anos sobre o meu constante estado de afobação por estar, mais uma vez, atrasada:

-Bom ia ser se o mundo parar e você continuar...

Sim. Era exatamente isso!

Precisava ter 10 anos para ver que a solução é simples.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Castanha de caju não é caju


O novo é sempre um momento de recriação. O outro traz sempre um universo desconhecido embrulhado em fita de cor. Tem gente que abre aos pouquinhos, pra degustar cada um dos passos que se dá com a caixa nas mãos. Tem gente que rasga o embrulho pra ver logo que cara tem aquilo tudo. Tem gente que acha a caixa sem graça demais e passa logo para o próximo pacote. Tem gente que brinca pra sempre com o presente e não se cansa de reinventar a brincadeira. Recreação.

A novidade não é um mar em cio em que não se consegue navegar. A novidade é a paz do barco aportado pra onde o mundo olha com inveja por não poder ancorar. Novidade é não viver entre altos é baixos. É trafegar entre altos e mais altos ainda com a certeza de que um novo despertar nunca será mais passado do que o ontem.

Tentar e testar são verbos que merecem ser conjugados em todos os modos. Imperativos, subjuntivos e indicativos. Eu prefiro o modo afirmativo pra acabar logo com a dúvida. Entre o sim e o não, fico com o pingo no i. A careta do limão é a certeza do azedume da fruta. O feijão no dente é a certeza de que o arroz fica melhor acompanhado.

Só dá pra gostar das coisas que são experimentadas. E de quantas coisas deixamos de gostar porque sequer tentamos saber que gosto têm?

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Inspiração


"Acabou Outubro. Passou Novembro. Dezembro se foi e não vi nenhuma manga cair do seu blog. Vai ver que os sentimentos e a criatividade vão chegar numa grande explosão de poesia em 2010. Fico debaixo da mangueira esperando a primeira manga de 2010 cair em minhas mãos, ou melhor na minha alma."
KK

Com um assopro desses na minha inspiração, sinto um sopro no coração.

KK, escrevo para você e para todas as pessoas que colhem as mangas do meu pé.

Teve mais manga do que gente em 2009. Tem mais manga do que gente em 2010!

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

O público é o privado de todos

Trabalho para a faculdade de Jornalismo, em dezembro de 2009

Em algumas cidades européias como Berlim, Paris e Barcelona, os metrôs e ônibus não possuem assentos preferenciais. Num primeiro momento, pode-se pensar na inadequação desse tipo de organização do espaço público em países tão evoluídos do ponto de vista das relações sociais coletivas.

O que ocorre nesse tipo de estrutura social é uma atribuição de valor inata ao comportamento do indivíduo sobre questões que transitam na esfera da coletividade. A prioridade é assunto tão sério, que chega a ser óbvio. Simplesmente, nesse modelo de relações sociais, não cabem assentos exclusivos. Cabe a cada cidadão a consciência de levantar-se ou não quando entra um idoso, um cadeirante ou uma grávida.

Essa forma de perceber o coletivo vai tão além da imposição, que o cidadão imerso nesse tipo de organização da esfera pública tira do Estado a responsabilidade e assume para a si certas questões que permeiam as relações sociais.

Roberto DaMatta em A Casa e a Rua, diz que “Na rua a vergonha da desordem não é mais nossa, mas do Estado. Limpamos ritualmente a casa e sujamos a rua sem cerimônia ou pejo… Não somos efetivamente capazes de projetar a casa na rua de modo sistemático e coerente, a não ser quando recriamos no espaço público o mesmo ambiente caseiro e familiar”.

Para o jurista e reitor da Universidade de Brasília (UnB), José Geraldo de Sousa Júnior, a praça, a rua é do povo. Assim como as leis. Para ele, o direito não está só na lei. A partir da esfera pública, pode-se e deve dar legitimidade aos direitos do povo. “Não é o Estado que cria o direito, mas a sociedade”, diz o reitor convicto de que a rua é o lugar do acontecimento, como expressão do indivíduo e sua coletividade. Para ele, é trabalho dos juristas compreender o direito a partir de suas fontes materiais, a sociedade organizada.

José Geraldo é defensor de uma corrente alternativa de direito, o chamado Direito Achado na Rua, que legitima direitos básicos do indivíduo e é balizado pelos Direitos Humanos. Roberto Lyra Filho, pai do Direito Achado na Rua, não colheu em vida os frutos de seu ideário social, mas José Geraldo tornou-se um eloquente porta-voz da Nova Escola Jurídica Brasileira, berço do Direito Achado na Rua. Para Lyra Filho, essa forma de organização social é a “enunciação dos princípios de uma legítima organização da sociedade”.

Colocar em prática o Direito Achado na Rua significa romper com uma relação mecanicista entre Estado e sociedade, de modo que eles possam relacionar-se e não hierarquizar-se. Da mesma forma que nem todo ato legal é legítimo do ponto de vista humanitário, as relações na esfera pública não o são simplesmente por estarem contidas em âmbito público. É necessário um fundamento ético, uma base dos Direitos Humanos como critério de auferição do que possa ser considerado direito ou não. Faz-se necessário, para tanto, que se reconheça menos no Estado o papel de provedor essencial, de modo que cada indivíduo esteja ciente de seus direitos e possa engajar-se na construção de uma coletividade que contemple ideais de justiça.

Roberto Lyra Filho utiliza o epigrama hegeliano no. 3 de Marx (Marx-Engels, 1983) aplicado ao campo de estudos do Direito Achado na Rua: “Kant e Fitche buscavam o país distante,/pelo gosto de andar lá do mundo da lua,/ mas eu tento só ver, sem viés deformante/o que pude encontrar bem no meio da rua”. A rua é o lugar simbólico do acontecimento, das redes de relações sociais, é o direito do povo.

Nesse sentido, chega-se a uma análise crítica do direito estatal, privilegiando a transformação social por meio da própria ação social. É uma mediação com horizonte emancipatório que serve para superar direitos violados e empoderar o cidadão. “A legislação não é o limite, é o ponto de partida”, diz José Geraldo. Empoderar o indivíduo significa reconhecê-lo na condição de agente da verdadeira transformação social.

Certa feita, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Gilmar Mendes disse que “O direito deve ser achado na lei, e não na rua”. Questionado sobre o que significaria a frase do ministro em relação ao Direito Achado na Rua, José Geraldo disse que a frase não questiona o Direito Achado na Rua. “Não é que o direito está na lei e não na rua. Ele só quis dizer que o juiz não pode ficar a mercê da manifestação social, o que não significa que deve ignorá-la”.

Para José Geraldo, o Direito Achado na Rua nasce da dialética que se origina do pensamento de interpretação do mundo como organismo em constante transformação. A partir da esfera pública, pode-se dar legitimidade a direitos do povo. “O direito não está só na lei”, diz ele. Trazer o Direito para as ruas significa acompanhar a dinâmica da sociedade, que se reiventa em ciclos distintos ao longo de seu processo de ação e reação no decorrer da história.

O Direito Achado na Rua presume participação ativa do cidadão no sentido de buscar para si um senso de responsabilidade sobre o coletivo. Cabe à sociedade uma postura auto-crítica sobre papéis e reponsabilidades, assumindo um limite claro porém mutável, entre dever do Estado e direito individual.

Transformar essas questões em pautas para reflexão, tanto da sociedade quanto das instituições faz parte do processo conciliatório que enquadra o público e o privado em categorias socialmente próximas do ponto de vista da atuação do Direito. Trata-se de um ciclo que se retro-alimenta: O Estado abrindo as portas para maior participação popular faz com que a população tome a frente em ações participativas, propondo e entendendo cada vez mais seu espaço de atuação no âmbito das instituições e exigindo do Estado cumprimento do seu papel enquanto instituição soberana de poder.

O caso de um linchamento, por exemplo, pressupõe uma injustiça anterior. As pessoas se mobilizam de modo a resolver na esfera pública esse questão. O linchamento causa alienação, no sentido de que tira a consciência daqueles que a praticam e tomam para si a responsabilidade de punir.

Quando a alienação se faz presente

Para o reitor da UnB, questões como machismo, escravidão e patriarcalismo são “formas de alienação antigas”. Após o caso ocorrido na UniBan, quando uma garota foi rechaçada por colegas de faculdade por trajar roupas curtas, houve na Universidade de Brasília uma manifestação a favor da garota Geisy.

Alguns manifestantes tiraram a roupa em protesto e o reitor foi indagado a respeito desse posicionamento. Com muita naturalidade, ele pergunta “O nu é, em si, um ato obsceno, um atentado ao pudor?” Ele entende que não. “Não havia carga de obscenidade. Aceitei como legítima a manifestação. Havia caráter político”. Apenas pedi a eles que, quando se encontrassem com o reitor, por decoro, estivessem vestidos”.

O POVO AO PODER
“A praça! A praça é do povo
Como o céu do condor
É o antro a liberdade
Cria águias em seu calor
Senhor! pois quereis a praça?
Desgraçada a populaça
Só tem a rua de seu...”
Castro Alves