terça-feira, 14 de julho de 2009

O MAR de um PORTO SEGURO


Era a primeira vez que pisava ali. Não sem uma certa estranheza, tateava as paredes e olhava bem onde pisava. Queria conhecer aquele lugar tão novo. Queria guardar aquela imagem em sua mente. Doía só de pensar esquecer algum detalhe daquilo que tanto a encantava.

Rodava sua saia em movimentos de uma dança que existia apenas lá, naquele lugar. Era um ritmo novo, um novo dançar. E era uma dança contagiante, daquelas que não dá vontade de parar. E quanto mais ela girava, mais giros queria dar.

Tudo era luz. Tudo era novo. Mas tudo parecia tão parte dela quanto o pequeno travesseiro que carregava desde menina. Aquela poltrona ali no canto contava ter guardado suas tardes apegadas aos livros de contos. O abajour testemunhou inúmeras de suas noites insones. O tapete tinha a poeira de seus pés.

O criado-mudo dizia o que ela escondia em gavetas desde sempre. As cortinas cantarolavam sua música favorita. O abre-e-fecha das portas dos armários entregava medos e anseios que ela jurava sequer falar em voz alta tamanha sua vontade em escondê-los.

Tudo era novo. Muito novo. Mas a poeira do tempo encarregava-se de atestar que aquilo já existia ali antes dela. Existia antes dela, mas encontrou explicação pra sua história, com ela. Por vezes, nela.

Era a primeira vez que pisava ali. Mas parecia que nunca havia existido um outro lugar no mundo.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

A arte do encontro


A entrega de um ao outro, pode até ser apenas um fast food, um little delivery. Dizer que vou ali e volto já, pode até funcionar, mas depois acaba ficando alguma coisa pra digerir.

E esse processo começou há muito tempo. Começou com séculos de submissão e opressão. Mulheres que serviram (e ainda servem) foram subjugadas ao poderio masculino ao longo dos séculos. A História conta a vitória dos homens, os sucessos de uma sociedade patriarcal e suas imensas glórias. Eva carregou a culpa de ter oferecido a Adão o fruto proibido. Representa, até hoje, o pecado.

Nossas antecessoras começaram a construir o templo da libertação. Galgaram muitos passos da nossa caminhada. Empilharam inúmeros tijolos. Elas. Elas e o tempo. Uniram preces, mãos e esforços. Queimaram sutiãs, foram inquiridas e queimadas. Desabrocharam em belas flores, beberam do Flower Power. E, pouco a pouco, de geração em geração, foram iniciando o processo de nos despir de culpas, medos e inquietações. E nada do que foi ou será pode interferir no que o tempo construiu com tijolos de areia fina.

Em uma longa e delicada andança, conquistamos a licença poética de nos sentirmos livres dos pudores. É uma escada de muitos lutos que se partem degrau a degrau. É um caminho de muita abnegação. E é uma caminhada de mão-dupla em que um dá e o outro recebe na mais legítima troca. Ainda mais do que isso, é a vontade de viver a sintonia dos encontros e a beleza da sinceridade.

Pode ser que a areia fina ceda à pressão do tempo como uma ampulheta apressada, mas pode ser que nós coloquemos a dose certa de água para manter firme todo e qualquer sentimento de cuidado para com o outro. Porque dar-se ao outro é dar o que há de melhor em si. É receber aquilo que o outro lhe oferece de mais próprio. É a porta de entrada para a alma alheia que passeia entre dois corpos na hora da comunhão.

Encontrar alguém, presume presença, presume estar presente. É viver o momento com consciência de estar ali, de pertencer àquele lugar. É se apropriar dos cheiros, das cores, dos detalhes que compõem aquele instante. É entender o seu papel. É entender o papel do outro. É saber coordenar todas as existências envolvidas. É ser justo consigo e com o outro. Encontrar alguém é, antes de tudo, encontrar a si mesmo.

Ser homem. Ser mulher. Os papéis sociais definem muito mais do que a própria natureza reservou para a espécie humana. Não é uma questão de saber cozinhar ou de entender de carro. Passa antes por momentos de divisão, do estabelecimento de papéis naturais, em que cada um revela seus talentos para potencializar o que há de melhor na existência do outro.

Uma sociedade verdadeiramente justa se constrói com valores justos. Constrói-se com a justiça das palavras não ditas.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

E por falar em planos: sonhos.


Quantas vezes a gente adia um plano porque coloca condições demais para ele se realizar? É o dia de morar sozinho que nunca chega porque gasta menos morar na casa dos pais. É a aula de violão que nunca acontece porque dá cansaço demais depois do trabalho. É o treino de corrida que é adiado inúmeras vezes porque não deu tempo de comprar o tênis.

E nessa brincadeira, vamos adiando coisas bem sérias e acabamos sendo negligentes com aspectos fundamentais de nossas vidas.

É muito comum ouvir por aí: "quando eu tiver isso ou aquilo, eu vou ser feliz" ou "quando eu passar no concurso, aí sim eu vou ficar completo", "quando eu terminar o mestrado, eu me caso", "quando eu tiver um bom emprego, eu vou ter filhos". Vamos adiando desde coisas bem simples até questões cruciais de nossas vidas.

Tem horas em que é essencial ter um plano, uma meta. Isso eu não discuto. Sinto até uma pequena inveja das pessoas que conseguem se organizar e cumprem com suas metas de curto e longo prazo.

Mas daí a querer condicionar as variáveis da vida a algum acontecimento que pode nem acontecer, eu já acho demais. Se o objetivo é ter mais grana pra realizar um sonho antigo e, quando seu salário aumenta, você troca de carro ou começa a comprar coisas que antes não estavam no script e o plano fica em segundo plano, algo está errado.

Porque algumas coisas não têm hora pra acontecer. E ficar controlando demais, pode fechar muitas portas. Esse papo de "depois que eu me formar, e fizer a pós em outro país, e arrumar um trampo bacana, e tiver uma casa grande, e isso, e aquilo, aí vai ser a hora de arrumar um par pra dançar". Como assim? Como dá pra escolher a hora em que alguém entra em nossas vidas?

Já é tão difícil alguém fazer uma aterrissagem triunfal na nossa pista que fica complicado definir onde, quando e como. Gente, se aparecer, apareceu. Se for no meio da faculdade, muda junto pro país da pós. Se apareceu no meio da pós, mora junto até terminar o curso e depois escolhe aonde continuar o caminho. A vida é assim. Quando as oportunidades aparecem, não dá pra brincar de uni-duni-tê. Tem que agarrar logo e seguir em frente. Porque o mundo gira rápido demais e, se a gente não acompanhar, fica pra trás.

Escolher a hora de ser feliz significa adiar para sempre um estado de espírito que deveria estar presente, que deveria existir agora. "Eu era feliz e não sabia" é figurinha que não completa álbum de bons sentimentos. Tem que ser feliz e saber. E, acima de tudo, tem que escolher ser feliz independente do emprego chato, do carro velho, do amor que não chega, das gordurinhas a mais, da saudade, da comida insossa.

Não vale sair batendo as portas atrás de nós mesmos. Abrir portas é viver mais livre. Ter mais caminhos pra seguir é poder escolher, é depender de menos pra ser mais. Mais felizes e mais completos.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Manifesto de uma boba, mas não tão boa assim


"Eu não sou boazinha". Já vou logo avisando!

Quando acabamos de conhecer alguém, ficamos envoltas numa aura colorida que exterioriza tudo aquilo que nos orgulha em nós mesmos. O impacto inicial de qualquer aproximação presume a explícita demonstração de tudo aquilo que temos de melhor. Parecemos campeões de uma copa do mundo colhendo os louros do feito recém-conquistado.

Em campo, só sorrisos, animação, diversão e um monte de estripulias pra contar. Cartão vermelho pro mau-humor, pro baixo-astral, pra baixa auto-estima. Com o amor-próprio lá em cima e uma boa dose de entusiasmo dá pra impressionar qualquer um que se aproxime mais afoito, querendo ficar por perto. Sejam romances, sejam amigos, sejam os novos colegas de trabalho. Ser humano adora gente nova e fica parecendo criança, querendo impressionar.

Tá, todo mundo tem um lado bom. Aliás, ótimo. E isso é lindo mesmo: a gente expressando o que há de melhor em nós mesmas soa natural e eu diria até, necessário. Somos um poço de sentimentos nobres.

Aí, um belo dia você acorda atrasada pra uma reunião importante. Sai correndo, sem tomar banho nem café da manhã. Chega atrasadíssima e ainda esquece o material da apresentação. Seu chefe te demite. O carro dos sonhos, financiado, vira pesadelo; a viagem de férias com os amigos, vai pro saco. Fica difícil arrumar trabalho. Chegam as contas, o cartão pra pagar e um novo emprego não parece uma possibilidade assim tão simples de aparecer.

Ou, você leva um pé na bunda. Ou tem uma briga no trânsito. Ou vê sua colega assumir o cargo que você tanto queria. Ou o cara de quem você tá a fim fica com a mulher que você mais abomina no mundo. Ou você é assaltada. Ou alguém puxa seu tapete no trabalho. Ou você perde uma competição. Ou você perde uma ação judicial. Ou seu carro quebra. Ou a gasolina acaba. Ou faltou gás. Ou a faxineira não veio. Ou o leite azedou. Ou alguém devorou a última fatia do bolo que você tinha guardado na geladeira pra comer depois do almoço. Ou seu espelho quebrou. Ou a bateria do seu celular acabou. Ou seu cabelo estava num dia ruim. Ou aquele financiamento tão esperado não saiu. Ou esgotaram os ingressos pro show do seu cantor preferido. Ou você encontrou alguém que não queria encontrar. Ou entrou no cheque especial novamente. Ou alguém próximo fica doente. Ou um parente querido morre. Ou seu cachorro foge. Ou, simplesmente, um dia você acorda mais puta da vida e acaba cuspindo pregos ao invés de falar bom dia.

E aí, afloram em você sentimentos não tão nobres assim: raiva, inveja, mesquinhez, egoísmo, vingança, ciúme, ódio, ansiedade, contrariedade, decepção, desilusão, insegurança, medo, rejeição, sofrimento, ressentimento, cisma, dor, frustração, entre outros dessa mesma estirpe. E você quer guardar tudo numa caixinha, pra segurar a onda de ser uma pessoa legal e não mostrar pra ninguém esse lado que você quer esconder até de si mesma.

Ser boazinha parece o modelo mais apropriado para a convivência em sociedade. Sempre disposta, sempre ajudando alguém, sempre de bom-humor. Mil atividades pra fazer, a vida pessoal, a vida profissional, a casa pra administrar. E ainda tem a academia, a aula de francês, o trabalho voluntário. Será que é possível ser a super-mulher o tempo inteiro? Ser boazinha é viver amarrada, trancafiada numa prisão em que as grades são palavras gentis ditas quase maquinalmente.

Quando nos damos conta de que não somos tão boazinhas assim, assumimos com mais propriedade o grito que demos, a bronca desnecessária no estagiário, a acusação indevida, a indiscrição vergonhosa. Fica mais fácil pedir desculpas quando a gente sabe que carrega essa porção "maléfica" dentro da gente. Porque colocar os demônios pra fora é assumir que eles existem. Assumindo que eles existem, fica mais fácil controlá-los. Controlando-os, fica mais fácil compreender quem somos em nossa vastidão.

Esconder o que há de cinza em nós é esconder um pedaço de nós. Somos inteiros apenas quando somamos todas as nossas partes. Guardar o que há de ruim numa caixa fechada, consome energia, força e muita lucidez. Pandora abriu a caixa que revelou ao mundo os males da existência humana. Nós devemos abrir nossas caixas para revelar a quem nos rodeia tudo aquilo que nos pertence.

A entrega só é completa quando envolve todos os compartimentos. Somos tudo de lindo e de feio que temos. Somos a nossa história de venturas e desventuras. Aceitar-se é o primeiro passo para ser aceito. Ser integral é o único passo para ser amado verdadeiramente. Não se reduza aos seus erros nem faça isso com quem quer que seja. Todos erramos e a magia da troca humana está em reconhecer o lado bom de tudo. Valorizar o que há de melhor em cada pessoa é equilíbrio dos maiores. Colocar-se no lugar de quem erra é não julgar.

Vitimizar-se é o caminho mais curto. Compreender seu papel no jogo do encontro abre asas e sentidos. Ouvir o que há de mais íntimo do outro não é sujar os ouvidos, é retirar a cera e deixar entrar em si a verdade do existir. É não ser apenas ouvidos, mas ser poros, prantos e sorrisos.

O encanto é a senha para a aproximação. Nos apaixonamos em níveis muito diferentes e o foco de nossa paixão não precisa ser, necessariamente, alguém com quem desejamos trocar intimidades e estabelecer uma relação amorosa. Nós nos apaixonamos quando queremos ser amigos daquela pessoa interessante. Quando disputamos a atenção daquela tia incrível que tem o dom de aconselhar. Quando nos identificamos prontamente com o avô de uma amiga querida e passamos horas a ouvir seus causos da juventude. Estar apaixonado é estar encantado por alguém.

Só que nem sempre, a paixão apresenta-se de modo a contemplar tudo o que somos. Apaixonar-se é pouco quando despreza parte do outro. Apaixonar-se pela sensação de estar apaixonado é sentimento dos prepotentes, que julgam-se melhores quando não admitem a miséria alheia. Querem o sorriso constante, a alegria infinita mesmo que não possam oferecer isso de volta. Querem a comédia do outro e desprezam a existência de sua própria tragédia interior.

Ser boazinha é ser boa, antes de tudo, com nós mesmas, assumindo-nos, entregando-nos e aceitando-nos. Feche os olhos e mire-se por dentro. O que você vê?