quinta-feira, 2 de julho de 2009

Manifesto de uma boba, mas não tão boa assim


"Eu não sou boazinha". Já vou logo avisando!

Quando acabamos de conhecer alguém, ficamos envoltas numa aura colorida que exterioriza tudo aquilo que nos orgulha em nós mesmos. O impacto inicial de qualquer aproximação presume a explícita demonstração de tudo aquilo que temos de melhor. Parecemos campeões de uma copa do mundo colhendo os louros do feito recém-conquistado.

Em campo, só sorrisos, animação, diversão e um monte de estripulias pra contar. Cartão vermelho pro mau-humor, pro baixo-astral, pra baixa auto-estima. Com o amor-próprio lá em cima e uma boa dose de entusiasmo dá pra impressionar qualquer um que se aproxime mais afoito, querendo ficar por perto. Sejam romances, sejam amigos, sejam os novos colegas de trabalho. Ser humano adora gente nova e fica parecendo criança, querendo impressionar.

Tá, todo mundo tem um lado bom. Aliás, ótimo. E isso é lindo mesmo: a gente expressando o que há de melhor em nós mesmas soa natural e eu diria até, necessário. Somos um poço de sentimentos nobres.

Aí, um belo dia você acorda atrasada pra uma reunião importante. Sai correndo, sem tomar banho nem café da manhã. Chega atrasadíssima e ainda esquece o material da apresentação. Seu chefe te demite. O carro dos sonhos, financiado, vira pesadelo; a viagem de férias com os amigos, vai pro saco. Fica difícil arrumar trabalho. Chegam as contas, o cartão pra pagar e um novo emprego não parece uma possibilidade assim tão simples de aparecer.

Ou, você leva um pé na bunda. Ou tem uma briga no trânsito. Ou vê sua colega assumir o cargo que você tanto queria. Ou o cara de quem você tá a fim fica com a mulher que você mais abomina no mundo. Ou você é assaltada. Ou alguém puxa seu tapete no trabalho. Ou você perde uma competição. Ou você perde uma ação judicial. Ou seu carro quebra. Ou a gasolina acaba. Ou faltou gás. Ou a faxineira não veio. Ou o leite azedou. Ou alguém devorou a última fatia do bolo que você tinha guardado na geladeira pra comer depois do almoço. Ou seu espelho quebrou. Ou a bateria do seu celular acabou. Ou seu cabelo estava num dia ruim. Ou aquele financiamento tão esperado não saiu. Ou esgotaram os ingressos pro show do seu cantor preferido. Ou você encontrou alguém que não queria encontrar. Ou entrou no cheque especial novamente. Ou alguém próximo fica doente. Ou um parente querido morre. Ou seu cachorro foge. Ou, simplesmente, um dia você acorda mais puta da vida e acaba cuspindo pregos ao invés de falar bom dia.

E aí, afloram em você sentimentos não tão nobres assim: raiva, inveja, mesquinhez, egoísmo, vingança, ciúme, ódio, ansiedade, contrariedade, decepção, desilusão, insegurança, medo, rejeição, sofrimento, ressentimento, cisma, dor, frustração, entre outros dessa mesma estirpe. E você quer guardar tudo numa caixinha, pra segurar a onda de ser uma pessoa legal e não mostrar pra ninguém esse lado que você quer esconder até de si mesma.

Ser boazinha parece o modelo mais apropriado para a convivência em sociedade. Sempre disposta, sempre ajudando alguém, sempre de bom-humor. Mil atividades pra fazer, a vida pessoal, a vida profissional, a casa pra administrar. E ainda tem a academia, a aula de francês, o trabalho voluntário. Será que é possível ser a super-mulher o tempo inteiro? Ser boazinha é viver amarrada, trancafiada numa prisão em que as grades são palavras gentis ditas quase maquinalmente.

Quando nos damos conta de que não somos tão boazinhas assim, assumimos com mais propriedade o grito que demos, a bronca desnecessária no estagiário, a acusação indevida, a indiscrição vergonhosa. Fica mais fácil pedir desculpas quando a gente sabe que carrega essa porção "maléfica" dentro da gente. Porque colocar os demônios pra fora é assumir que eles existem. Assumindo que eles existem, fica mais fácil controlá-los. Controlando-os, fica mais fácil compreender quem somos em nossa vastidão.

Esconder o que há de cinza em nós é esconder um pedaço de nós. Somos inteiros apenas quando somamos todas as nossas partes. Guardar o que há de ruim numa caixa fechada, consome energia, força e muita lucidez. Pandora abriu a caixa que revelou ao mundo os males da existência humana. Nós devemos abrir nossas caixas para revelar a quem nos rodeia tudo aquilo que nos pertence.

A entrega só é completa quando envolve todos os compartimentos. Somos tudo de lindo e de feio que temos. Somos a nossa história de venturas e desventuras. Aceitar-se é o primeiro passo para ser aceito. Ser integral é o único passo para ser amado verdadeiramente. Não se reduza aos seus erros nem faça isso com quem quer que seja. Todos erramos e a magia da troca humana está em reconhecer o lado bom de tudo. Valorizar o que há de melhor em cada pessoa é equilíbrio dos maiores. Colocar-se no lugar de quem erra é não julgar.

Vitimizar-se é o caminho mais curto. Compreender seu papel no jogo do encontro abre asas e sentidos. Ouvir o que há de mais íntimo do outro não é sujar os ouvidos, é retirar a cera e deixar entrar em si a verdade do existir. É não ser apenas ouvidos, mas ser poros, prantos e sorrisos.

O encanto é a senha para a aproximação. Nos apaixonamos em níveis muito diferentes e o foco de nossa paixão não precisa ser, necessariamente, alguém com quem desejamos trocar intimidades e estabelecer uma relação amorosa. Nós nos apaixonamos quando queremos ser amigos daquela pessoa interessante. Quando disputamos a atenção daquela tia incrível que tem o dom de aconselhar. Quando nos identificamos prontamente com o avô de uma amiga querida e passamos horas a ouvir seus causos da juventude. Estar apaixonado é estar encantado por alguém.

Só que nem sempre, a paixão apresenta-se de modo a contemplar tudo o que somos. Apaixonar-se é pouco quando despreza parte do outro. Apaixonar-se pela sensação de estar apaixonado é sentimento dos prepotentes, que julgam-se melhores quando não admitem a miséria alheia. Querem o sorriso constante, a alegria infinita mesmo que não possam oferecer isso de volta. Querem a comédia do outro e desprezam a existência de sua própria tragédia interior.

Ser boazinha é ser boa, antes de tudo, com nós mesmas, assumindo-nos, entregando-nos e aceitando-nos. Feche os olhos e mire-se por dentro. O que você vê?

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